O destino é um cão de caça, e quando ele fareja você não
adianta correr ou se esconder, ele vai te encontrar.
Naquele fim de tarde, Vavá tropeçava nas raízes escondidas
sob as poças d’água, pelo caminho lamacento cortado por cicatrizes deixadas
pelas rodas de caminhões, e que não sabia exatamente para onde o levava. Em
algum lugar à sua frente, sonhava, estava o mar, e era em direção ao mar que
seus passos pareciam dirigir-se com persistência. Não teria sido capaz de
explicar por que se esforçava a caminhar para este alvo, a menos que estivesse
possuído pelo mesmo instinto que orienta a caça em direção ao penhasco no
momento extremo.
O cão do destino estava certamente em seus
calcanhares: fome, cansaço e desespero lhe nublavam o cérebro, e não havia nele
energia suficiente para se questionar o que o impelia para a frente. Vavá era
um desses indivíduos que parecia haver tentado de tudo, mas em todas as poucas
oportunidades que se apresentaram, alguma coisa, da parte dele ou da sorte, havia arruinado
todas as possibilidades de sucesso.
Agora não havia nada mais para
tentar. Mas o desespero não lhe acordara nenhuma reserva adormecida de energia,
pelo contrário. O torpor crescera ainda mais, e a apatia tomara conta de sua
alma.
Com a roupa do corpo, menos que dez reais no bolso, e sem um
único amigo ou conhecido a quem recorrer, sem nenhum plano alem de encontrar
uma cama para a noite ou uma refeição para amanhã, Vavá arrastava-se, avançando
pelo úmido e enlameado caminho, sua mente vazia, exceto pela informação de que
à sua frente, em algum lugar, estava o mar.
Outra coisa lhe vinha à mente de vez em quando: estava
faminto.
Após algum tempo se viu diante de um portão de garagem
aberto, que conduzia para uma enorme
oficina. Na frente, várias carcaças de motos provavelmente largadas a
muitos anos, com a poeira e a ferrugem se acumulando. Sobre a porta da oficina
um letreiro descascado dizia: NOBRES MC.
Num primeiro momento, havia pouco sinal de vida por perto. Uma
chuva fina e gelada, no entanto incomodava. Vavá resolveu entrar, nem que fosse
para pedir um gole de café para lhe aquecer as entranhas. Entrou lentamente na
oficina, tomando cuidado para não parecer um invasor, mas também não despertar
atenção. Lá dentro, a mesma situação: elevadores abandonados, vazios. Armários
de ferramentas, velhos, amassados, alguns abertos, vazios. O lugar estava
relativamente limpo. Mas o ar de decadência era nítido.
Não havia andado nem três passos e um velho de barbas e
cabelos longos surgiu para lhe recepcionar.
- Posso entrar por causa
da chuva? – Vavá começou, mas o velho o interrompeu.
- Entre, seu Príncipe. Sabia que o senhor iria voltar um dia
desses.
Vavá foi entrando, olhando de rabo de olho para o velho, sem
entender nada.
- Senta que eu vou arrumar alguma coisa pro senhor jantar –
disse o velho ansioso, conduzindo Vavá para os fundos da oficina, onde havia
uma grande sala.
As pernas de Vavá cederam ao esgotamento extremo, e ele caiu sentado numa poltrona. Em poucos minutos estava devorando uma sopa de legumes
quente, com pão com manteiga, que o velho havia colocado na sua frente.
- O senhor mudou um pouco nesses quatro anos – continuou o
velho, numa voz que, para Vavá, soava distante, como num sonho – mas vai nos
encontrar bastante mudados também, isso vai. Não sobrou mais ninguém por aqui:
ninguém a não ser eu e seu tio. Vou lá contar pra ele que o senhor veio; ele
não vai querer ver o senhor, mas vai deixar que fique. Ele
disse que se o senhor voltasse poderia ficar, mas que não queria falar nem se
encontrar com o senhor de novo.
O velho colocou uma garrafa de cachaça na frente de Vavá, e
saiu coxeando pros fundos da oficina. A garoa se transformara em uma chuva
forte que chicoteava violentamente nas janelas, e o vagabundo pensou, com um
arrepio, em como estaria sua situação se não tivesse encontrado essa oficina,
com a noite e o frio avançando.
Acabou de comer, serviu uma boa dose de pinga e ficou
sentado calmamente, cabeceando e esperando o retorno de seu estranho
hospedeiro. À medida que os minutos passavam, uma nesga de esperança começou a
despontar na mente do homem, a ânsia por comida e descanso por alguns
minutos se expandira na possibilidade de encontrar abrigo sob este
hospitaleiro teto. O som dos passos do velho anunciou sua chegada.
- Seu tio não quer ver o senhor, seu Príncipe, mas o senhor
pode ficar. Isso é certo, já que a oficina e
a sede do clube vão ser suas mesmo quando ele for pra debaixo da terra.
Já troquei a roupa de cama do seu quarto. O senhor não vai encontrar mudanças,
deixamos tudo do jeito que o senhor deixou quando partiu. O senhor está
cansado, não quer subir agora?
Sem uma palavra, Vavá se levantou pesadamente e seguiu o
velho pelas escadas, por um corredor cheio de fotos antigas, até um pequeno mas
aconchegante quarto, decorado com pôsters de motos e mulheres nuas, e poucos móveis. Ali, no centro do quarto,
uma visão do paraíso: uma cama macia, com lençol limpinho, quentinha. Mal
conseguiu arrancar as roupas antes de despencar na cama. Ao que parece, o cão
do destino havia dado uma trégua por um instante.
A manhã estava fria quando Vavá acordou, lembrando a
situação em que se encontrava. Talvez pudesse descolar uma comida apoiado na
semelhança com este outro porra-louca ausente, e vazar antes que a fraude fosse
descoberta. No andar de baixo encontrou o velho passando um café, e uma mesa
com pão, manteiga, suco de laranja... Quando sentou à mesa apareceu um pequeno
e amistoso vira-latas.
- Essa é Ohana, filhote da Moana – explicou o velho – ela
era louca pelo senhor. Depois que o senhor partiu, em menos de um ano ela
morreu.
Vavá não lamentou a morte da velha cadela, sabia que era
muito possível que ela o identificasse, e certamente teria denunciado o
intruso.
- Vai sair de moto, seu Príncipe? A Shovel está tinindo, eu
mesmo a mantive esse tempo todo.
- Não tenho capacete – gaguejou Vavá, assustado da
possibilidade de ser desmascarado de repente.
- Seu Príncipe, todas as suas coisas estão onde as deixou. É
só tirar do armário que passo um paninho pra tirar o cheiro de guardado. Vai
ser bom pro senhor matar a saudade da “Poderosa”, cuidei dela melhor que o
senhor cuidava. O senhor vai ver que o pessoal do vilarejo vai te olhar de cara
torta. Eles não esqueceram nem perdoaram. Mas ninguém vai te incomodar, não vai
ter problema nenhum pra dar uns roles de moto.
O velho saiu capengando em direção à oficina, enquanto Vavá
subia para checar as coisas do “seu Príncipe”. No quarto, dentro do
guarda-roupas, Vavá encontrou um capacete antigo, que lhe serviu
excepcionalmente bem. Ainda ali estava uma jaqueta, que lhe ficou um pouco
larga, um par de botas, e um colete de couro, com um brasão costurado às costas
“NOBRES MC”.
Enquanto o intruso se vestia com as roupas do ausente,
pesava o que o “seu Príncipe” havia aprontado para colocar o vilarejo todo
contra ele. O som inconfundível do motor da Shovel cortou sua linha de
pensamento, o velho trouxera a moto.
- Que se foda – pensou Vavá quando montou na “Poderosa” e
saiu pelo caminho enlameado.
Sua habilidade surpreendeu até a ele mesmo. Sempre gostara
de motos, mas não lembrava a última vez que montara numa Harley. E a moto
pesada, no caminho de lama, tirou lá do fundo dele uma performance que não sabia ter.
O corpo que no dia anterior parecia quase desmaiar de fome e
cansaço, mostrou energia suficiente para passar os piores pedaços do caminho,
até que Vavá caiu numa estradinha de asfalto, onde torceu o cabo da “Poderosa”,
deixando pra trás qualquer preocupação.
Mais à frente, num cruzamento, parou para a passagem de um
caminhão. Este passou lentamente, seus ocupantes olhando de cara amarrada, e um
garoto, no banco do passageiro falou alto:
- É o Príncipe, dos NOBRES! Aparecendo de novo por aqui,
hein!!!”
Pelo visto, a semelhança que enganara o velho era suficiente
para enganar outros olhos a alguma distância...
No decorrer do passeio, outras situações semelhantes
aconteceram. Olhares atravessados, caras amarradas, e comentários sussurrados
se seguiram. Ou seja, o que o tal Príncipe aprontara estava bem vívido na
memória da população local.
Ao desmontar da moto em frente à porta lateral viu de
relance um velho alto espiando pela janela do segundo andar. Provavelmente
“seu” tio.
Enquanto se deliciava com o macarrão com carne assada que o
esperava de seu passeio, Vavá ponderou a precariedade de sua situação: o
verdadeiro Príncipe poderia chegar de repente, ou uma noticia dele. Ou ainda um outro parente que aparecesse e não achasse
a semelhança assim tão grande. Qualquer dessas situações iriam desmascará-lo, e
ia dar merda, e grande. Por outro lado, largar aquele momento de luxo pra voltar pro céu
aberto e os caminhos tortuosos que o levam ao mar não lhe parecia uma
alternativa viável. Quem sabe poderia trabalhar um pouco na oficina, tinha
visto algumas motos nos fundos, e uma das muitas coisas que tentara na vida tinha
sido ser mecânico de motos. Quem sabe consertar algumas motos em troco da
hospitalidade que ele usurpava no momento...
- O senhor vai querer jantar ou lanche hoje à noite, seu Príncipe?
- Jantar, prefiro jantar.
Não se lembrava de ter tomado uma decisão tão rápido na sua
vida, e ao dar a ordem percebeu que iria ficar.
Vavá se mantinha nas partes da oficina e da casa contígua
que num acordo tácito pareciam ter sido delimitadas a ele. As poucas vezes que
chegou a mexer na Shovel na oficina, o fez discretamente e sem muito barulho.
Seu tio nunca o via.
Ele já estudara detalhadamente as fotos em seu quarto, e
espalhadas pela sede do Moto Clube, e já percebera uma real
semelhança física entre o verdadeiro “Príncipe” e ele, o charlatão invasor do
trono. Até as roupas que antes se mostravam folgadas, agora, alguns quilinhos a
mais, lhe serviam perfeitamente. Só não ousava vestir o colete. Por algum
motivo, aquela peça do vestuário lhe trazia calafrios.
Tentou tirar do velho mais informações sobre o tal Príncipe,
qual a cagada que ele havia aprontado a ponto do lugarejo todo lhe querer tão
mal.
- Estão contra o senhor. Se pudessem te matavam. Isso é
muito triste, muito triste.
Nunca conseguiu extrair nada mais esclarecedor do velho.
Numa tarde clara e gelada, Vavá estava nos fundos da oficina
mexendo da “Poderosa”, com a pequena cadela Ohana a seu lado. Ele havia dado uma boa arrumada naquele canto da
oficina, juntara e limpara diversas ferramentas, e com alguma ajuda do velho,
estava conseguindo realmente aprender a arte da manutenção de Harleys antigas.
Vavá ouviu seu nome adotado ser pronunciado ansiosamente. Instintivamente soube que alguma merda acontecera, e, ao olhar em
volta, percebeu o quanto seu cantinho na oficina era um lugar do qual agora temia ser
expulso.
- Seu Príncipe – disse o velho num sussurro alto – o senhor
tem que sumir daqui por uns dias. Os Hound Dogs estão na cidade, e o Pastor jurou que se cruzar contigo, te dá um tiro. E
dá mesmo, dá pra ver nos olhos dele! Vaza agora mesmo, aproveita que o sol está
se pondo, e some! Eles não devem ficar muito tempo aqui, devem estar só de
passagem. Em uma ou duas semanas o senhor volta.
- Mas pra onde eu vou? – gaguejou Vavá, agora infectado pelo
terror do velho.
- Segue pela costa até Arvoredo e fica escondido lá. Quando
os Dogs tiverem partido, eu mesmo levo a Shovel pro senhor.
-Mas...
- Dinheiro não é problema – disse o outro – seu tio também
acha que é a melhor saída no momento, e me deu isso pra entregar ao senhor.
Vavá se sentiu o maior filho-da-puta quando esticou a mão
para pegar R$300,00 da mão do velho. Se esgueirando no lusco-fusco do fim de
tarde, olhou para trás quando cruzou o portão para acenar par o velho e a
cadela Ohana, únicos amigos a lhe dar um silencioso adeus. Não se imaginava
retornando, e sentiu um amargo na boca ao pensar nos dois a esperar sua volta.
Algum dia, quem sabe, o verdadeiro Príncipe voltaria, e ia ser um incrível
assombro para aquela gente humilde tentar entender a verdadeira identidade do
nebuloso visitante que haviam hospedado.
Com seu próprio destino não se preocupava. Trezentas pratas
dão pra pouca coisa, mas para um homem acostumado a andar com pouca grana,
parecem um bom ponto de partida. A sorte havia virado a seu favor da última vez
que viera por este caminho lamacento como um aventureiro desesperado, e ainda
podia haver oportunidade de encontrar trabalho e começar tudo de novo; à medida
que se afastava da oficina ia ficando mais animado. Havia a sensação de alívio
por reconquistar sua identidade perdida e esquecer o fantasma obscuro do outro.
Não se deu ao trabalho de se preocupar com os tais Hound Dogs, o tal Pastor, ou
qualquer inimigo – eram agora tão irreais como a vida que vivera nos últimos
tempos, pouca diferença fazia. Pela primeira vez em algum tempo se sentia
verdadeiramente feliz e sem preocupações.
Então, eis que do nada, ouve o som inconfundível de um
cartucho sendo impelido para a agulha de uma 12. Olhando adiante, seis motos encostadas
à beira da estrada, e no meio desta um homem empunhando a espingarda. Não houve
necessidade de se perguntar quem poderia ser, o luar caindo-lhe sobre o rosto
revelou um rosto dominado pelo ódio, como Vavá nunca vira. Ele ainda tentou pular para o
lado num esforço desesperado de fugir pelo mato, mas os galhos grossos o
impediram.
A matilha do destino esperara por ele naquele caminho
lamacento.
Mas desta vez ele não ia escapar.
Um comentário:
Belo texto, quem é o responsável pela obra?
Teria "Vavá" esquecido suas "façanhas"?!
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